Pearl Jam: Uma banda com memória

06/09/06



Um só concerto não chegava para colmatar a espera de seis anos, desde que Portugal viu os Pearl Jam pela última vez. Eram precisos dois concertos. Ou mais. Mesmo com alinhamentos intermináveis e dois encores cada, a sede cresceu ainda mais, ainda que fossem precisas poucas canções para a matar. É assim quando há tanta música para servir, fãs tão conhecedores e tanta empatia entre uma banda e o seu público. Foram assim os concertos dos Pearl Jam no Pavilhão Atlântico, ontem e anteontem à noite.

Não foram dois concertos iguais. Longe disso. Sabia-se que iam ser diferentes. Os alinhamentos da digressão de promoção ao recente álbum homónimo estavam constantemente a mudar, como quem carrega no botão de um computador para distribuir as músicas aleatoriamente pelas diferentes cidades. Mas não pode vir de um computador a sensibilidade com que escolheram determinadas músicas para Lisboa – como "Last kiss", com Eddie Vedder no centro da plateia, tocada sem falhas no equipamento (ao contrário do que aconteceu no Restelo, no que acabou por ser um dos momentos mais lembrados dessa noite).

Era, por isso, fácil encontrar caras repetidas na audiência. Os Pearl Jam não andam só a tocar praticamente toda a discografia – andam também a tocar temas que raramente tocavam. Perder a oportunidade de ouvir "aquela" música não foi, para muitos, uma possibilidade. A escolha compensou: poucas músicas repetidas e imensas recordações que só os fãs mais atentos – todos? – conhecem.

Interessante era também fazer o exercício de imaginar como seriam estes fãs há uns anos, no auge do grunge, de cabelos compridos e camisas de flanela. O rumo da história do rock podia ter ditado o fim do sentido de bandas como esta. Mas os fãs cresceram. E a banda também, provando que está muito para lá desse movimento de Seattle a cuja etiqueta está inevitavelmente atada. Os Pearl Jam têm o seu próprio mundo. Umas vezes introspectivo, outras politicamente activo, mas sempre apontado à pura comunhão. Um mundo de braços abertos, capaz de deixar dois pavilhões atlânticos num gigantesco sorriso colectivo.

Duas maratonas de música

A lista de temas ascende a cerca de trinta por noite, em duas maratonas que terminaram com todas as luzes do Pavilhão Atlântico acesas e sem vontade de deixar o recinto. No site oficial da banda, www.pearljam.com estão já disponíveis os alinhamentos. É também possível comprar o registo ao vivo dos espectáculos, através de "download". Todos os álbuns foram visitados. De "Ten" vieram temas como "Even flow", "Jeremy", "Alive", "Black" ou "Garden". De "Vs", "Animal", "Dissident", "Elderly woman behind the counter in a small town" ou "Rearviewmirror". De "Vitalogy", "Not for you", "Better man" ou "Corduroy". De "No Code", "Hail hail", "Smile" ou "Lukin". De "Yield", "Given to fly", "Wishlist" ou "Do the evolution". De "Binaural", "God’s dice" ou "Insignificance". De "Riot Act", "I am mine" ou "Save you". De "Pearl Jam", "World wide suicide", "Life wasted", "Comatose", "Severed hand", "Big wave" ou "Come back" (em homenagem aos Ramones). A juntar à discografia original, os Pearl Jam tiraram da caixa toda uma série de músicas que durante muitos anos andaram soltas em compilações ou em cassetes trocadas entre fãs. Preciosidades como "Footsteps", "Yellow led better" (a fechar ambas as noites), "Crazy Mary", "State of love and trust" ou "Keep on rocking the free world".

Não deixa de ser extraordinária a facilidade com que tocam tantas e diferentes músicas dia após dia. Solução: muitos meses de ensaio ou uma excelente memória. A primeira hipótese parece mais sensata, mas a segunda não o é menos. Afinal, os Pearl Jam são uma banda com boa memória. Lembram-se da extraordinária recepção que tiveram em Cascais em Novembro de 1996, quando actuaram em Portugal pela primeira vez (também aí em dose dupla). Lembram-se da segunda vez, no Estádio do Restelo, em Maio de 2000. Lembram-se do que (não) tocaram. Lembram-se das pessoas com que se cruzaram na praia. Lembram-se de trazer o cavaquinho que lhes foi oferecido em Portugal. Lembram-se de continuar a acarinhar os fãs sem vestígio de vedetismo.

Eddie Vedder continua a ser o mestre de cerimónias perfeito. À voz de barítono junta o carisma infalível de quem sabe conduzir milhares de pessoas como se estivesse a falar com cada uma delas em cada momento (em inglês, mas também em português). Podia ser uma estrela de rock, mas nunca o será. É, isso sim, o maestro de uma banda que toca como se "Pearl Jam" fosse, de facto, o primeiro álbum. Este é a síntese descarada da garra resgatada aos primeiros discos com o tom mais experimental e maduro dos mais recentes. Noutras filosofias, podia ser o fim da história dos Pearl Jam. Mas é o começo de uma nova: uma história com boa memória.

in Jornal "Público"